Numária do Mestre de Avis

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MCarvalho
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Re: Numária do Mestre de Avis

#21 Mensagem por MCarvalho » domingo nov 10, 2019 3:27 pm

Só este fim-de-semana é que pude deitar as mãos como deve ser ao Numária do Mestre de Avis. Pelo que agradeço desde já ao Iúri (como é óbvio), mas também ao José Almeida e ao Paulo Alves por terem tido a trabalheira de me fazerem chegar às mãos o volume. E digo trabalheira porque quem já o teve na mão sabe de facto que é um trabalho de peso :)

Rapidamente: o trabalho é hercúleo. Não me lembro de ver uma obra tão exaustiva e multifacetada sobre apenas um reinado/emissor. Refiro-me a bibliografia em termos internacionais, não apenas nacionais. A par disso, a obra é também, como sabemos, um catálogo o mais completo possível (o Iúri generosamente disponibilizou essa parte online). E a partir daqui, de toda uma reorganização dos sistemas monetários joaninos, da posição de cada tipologia (os quintos finalmente ganham o lugar que Marques há 25 anos reivindicava; os pequenos Y estão no seu lugar, os pretos, etc.), uma leitura que sem dúvida permite, a quem estiver atento, reorganizar racionalmente esta numária (sei que, enfim, não será para já, o mundo da numismática em Portugal é muito pouco dado a novidades e a reflexões, mas a semente, já com tronco e ramos, está lançada).

Quando digo que o trabalho é exaustivo, refiro-me não apenas ao alcance da amostragem e do tratamento metodológico para todas as moedas, mas exaustiva também no sentido mais abrangente do tema: ou seja, não se trata de uma obra que se esgota na análise metrológica e descritiva/referencial dos espécimes. Há toda uma carga interpretativa e reorganizadora que lançam o trabalho para um nível que está a seguir à maior parte das obras numismáticas (que são poucas hoje em dia, infelizmente, aliás, o Iúri está duas ou três gerações distante de um Marques Gomes ou de um Ferraro Vaz, mas seria muito interessante pô-los em debate com ele). Essa análise mais aprofundada reflecte-se, por exemplo, na interpretação dos modelos de legendas escolhidas, na apropriação dos próprios monogramas reais para os "aproximar" de leituras diferentes (o nome de Cristo, por exemplo), a subcamada propagandística constante e intensiva, típica de qualquer monarca que tomou o poder à força, por revolução e anti-sistema. Até neste aspecto, é interessante ver que o Iúri vai buscar referencial bibliográfico actualizadíssimo, lembro-me, por exemplo, do Metelo de Seixas e dos dragões ;).

Nesta abordagem mais alargada, noto, por exemplo, que é a primeira vez que, num mesmo trabalho, se reflecte e considera hermeneuticamente as moedas furadas de D. João I, dando-lhes uma contextualização socio-cultural e antropológica, sustentada em fontes que também raramente é abordada, sobretudo em obras de conjunto. Quanto às fontes, é igualmente interessante ver que o Fernão Lopes e o Zurara não são os únicos e últimos a serem referidos, a cronística estrangeira está lá e isso, se na historiografia sempre (... mais ou menos :angel: ) teve peso aqui em Portugal, na numismática pura nunca aparece. Falo do Ayala e do Froissart, por exemplo, verdadeiros contemporâneos da maior parte das emissões.

Gostei de ler também (embora há ali um itinerário que me pareça muito complicado de demonstrar, - falo do Pelegrin da Casa de Navarra) a abordagem à amoedação de Gante no Porto e a análise estilística das moedas daquela oficina com os reais e meios-reais (na verdade só há um de cada). A ideia de que o moedeiro do Lencastre esteve a laborar no Porto é muito interessante e quando digo complicado de demonstrar, não quero dizer que seja extravagante, há listas de gente embarcada com Gante, nos acampamentos, etc. e por aí pode aparecer (ex. - nunca falamos sobre isso, não me ocorreu pensar nisso - em Babe, 1387, no tratado que Gante assina com D. João I, as testemunhas que lá estão são impressionantes, tens os nomes que vão desde os condestáveis de Portugal e Inglaterra, o João das Regras, os chanceleres, etc. etc. etc. seria interessante ver com calma se há lá algum artista como Pelegrin der Sur (Auxerre?) - estou a escrever isto sem ainda ter repegado no doc.). A verificar-se, seria, pessoalmente, interessantíssimo, porque iria conciliar o trabalho do Béltran com a ideia que outro gajo aventou aqui há uns tempos.

Bom... confeso que senti um pouco a falta de um enquadramento mais exaustivo, ou melhor, mais sistemático, do enquadramento económico dos vários sistemas, i.e., com aproximações a preços e salários, para que as taxas mirabolantes da inflação de quatrocentos e pouco tivessem uma leitura mais simplificada para os leitores, mas 600 páginas não dão para tudo, nem eu, é óbvio, consegui ver tudo :green:


MCarvalho

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numisiuris
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Re: Numária do Mestre de Avis

#22 Mensagem por numisiuris » segunda nov 11, 2019 3:09 pm

Caro João Paulo, agradeço-lhe o apoio e as palavras! Vamos lá ver se é desta que conseguimos catalogar estas moedinhas convenientemente! :)

Mário, este, como sabes, foi um trabalho que me deu muito gosto fazer. Sobretudo pela época que retrata, que é interessantíssima. Num ápice, Portugal muda. Os velhos interesses bafientos defendidos pela aleivosa (protectora dos grandes latifundiários) são substituídos por ideias novas. Que, como sempre, geram progresso. E é esse o Portugal de Avis! Não tenho dúvidas de que a revolução de 1383 foi a mais importante da história de Portugal. Foi daí que resultaram as bases do país que viria a ser a maior potência mundial na segunda metade do século XV. Apareceu gente nova. Com essa gente, novas ideias. E daí se fez magia! Não julgo sequer que D. João tenha tomado o poder à força. Os apoios foram inúmeros e o resultado da revolução é a certeza de que a sua causa era a mais correcta.

As tuas palavras, por tudo o que encerram de elogioso, deixam-me até um tanto ou quanto encavacado. :) Tens sido dos poucos que em Portugal tem feito um esforço para publicar artigos que possam contribuir para o avolumar do conhecimento numismático. Fizeste um trabalho estupendo neste fórum. E, atrevo-me a dizer, sem os teus ensinamentos, eu nunca teria feito o trabalho que fiz, ainda que em alguns aspectos com opiniões contrárias à tua. Era bom que um dia pudéssemos voltar a discutir, por escrito e publicamente, todas estas questões eternas, em círculos. E que fosse aparecendo gente com capacidade e vontade para as trabalhar e desenvolver. E que não nos importássemos com o registo da nossa opinião, viesse o futuro comprová-la ou desmenti-la. É sempre essa dinâmica de "tentativa-erro" que acaba por gerar a luz!

Quanto ao meu estudo propriamente dito, foi o que consegui para já fazer. Não está perfeito e arrisco dizer que nunca estará. Mas tenho a certeza que traz ideias novas, muitas delas correctas, outras que o futuro eventualmente desmentirá. É sempre assim o conhecimento. Tem que se limar. Aperfeiçoar. Melhorar. E esse caminho é eterno e não tem fim. Preocupei-me sobretudo em expôr os pressupostos e publicar a informação que pudesse levar à reinterpretação do trabalho. A minha ideia desde sempre: "um estudo que possibilitasse o estudo". Não queria dizer "isto é assim", sem dar ao leitor a possibilidade de apreciar os meus fundamentos e retirar conclusões póprias. Quem quiser pegar na numária do mestre de Avis e reinterpretá-la, julgo eu, terá no trabalho todas as ferramentas para o fazer. Naturalmente que isto tem um senão: o autor não fica defendido. Mas o objectivo foi o de defender as moedas, tão só.

Aproveito para lembrar que as introduções históricas dos sistemas (escritas em itálico) são da autoria do Mário. Muito lhas agradeço! Tentei que este trabalho tivesse a mão de todos. Queria que ficasse o melhor possível. O Rui era para ter feito um capítulo sobre contos e medalhas, mas acabou por não ter disponibilidade. De qualquer modo, poder-se-á sempre fazer uma segunda edição. Eu continuo a juntar amostra. Já cá tenho mais 150 fotos. A questão do Pelegrin poderá ser mais investigada. Aliás, há muitas questões que poderão ser alvo de estudo mais aprofundado. O Gonçalo, por exemplo, ficou siderado com a possibilidade de os sinais ocultos servirem para escrever mensagens, quando associados. O uso de símbolos da alquimia não parece ser um mero acaso. Todas essas ideias poderão germinar numa segunda edição. Pelo que se aceitam todos e quaisquer contributos.

Quanto ao enquadramento económico dos sistemas, tens toda a razão. Poder-se-ia fazer mais. Incluir nas pranchas o preço de certos bens essenciais, discriminado cronologicamente. Ou até fazer a análise da evolução do preço da prata, em conjugação com a inflacção. Caso queiras trabalhar neste aspecto, há espaço para mais um capítulo, ou quantos vierem, numa futura edição. Lanço apenas um alerta relativo às leis de actualizações de rendas e de equivalências monetárias. Aquilo é um labirinto. Que na minha opinião não pode gerar nada. Basta fazermos o esforço de comparar a taxa da actualização das rendas e da inflacção durante o estado novo, para percebermos que os valores não se acompanham. Que há instrumentos de política económica que os estados têm ao alcance, para prosseguir certos intentos. E que as queixas dos proprietários certamente quererão dizer que as rendas foram actualizadas, prejudicando-os. Mesmo o preço da prata tem o que se lhe diga... Serve para tabelar qualquer coisa "por cima". Mas não serve para perceber o valor da inflação. Esse, para mim, só pode ser percebido com acuidade "ao longe". Usando a fórmula do rui: 10x7=70; 70x10=700. Mas isto já se sabia há muitos séculos.

No final, deixo a errata em que estive a trabalhar durante a semana passada. Podem imprimi-la e juntá-la ao livro. Agradeço ao Higino e ao Diogo o trabalho que tiveram em me alertar para certos erros. Há um erro que para mim é grave e do qual apenas me apercebi recentemente, quando voltei a abrir as actas e dei com um artigo que me escapou. O que acabou por fazer falta neste trabalho foi um orientador que dominasse o tema. O drama é que esse orientador, em Portugal, não existe. Logo, fez-se o que se pôde e ir-se-á compondo o estudo. Estou hoje praticamente certo de que um dia irei lançar uma segunda edição.

https://www.dropbox.com/s/s093d8okmkni8 ... A.pdf?dl=0

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